sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Início Mestrado Profissional de Física: A Revolução Copernicana


Textos da aula inaugural do Mestrado Profissional de Física UFAL  ministrada pelo professor *Jenner Barreto Bastos Filho
Texto 1: O que é a Revolução Copernicana?
Uma resposta frequente a esta pergunta é que a revolução Copernicana constituiu-se no processo histórico que redundou na substituição do sistema geocêntrico pelo sistema heliocêntrico, inclusive no que diz respeito às profundas consequências acarretadas por essa substituição para a história da humanidade. Para explicar o porquê de no decurso de 24 horas um dia e uma noite se alternam, um defensor do sistema geocêntrico postula que a Terra está imóvel e o Sol faz uma volta completa em torno da Terra no período de 24 horas, enquanto um defensor do sistema heliocêntrico postula que o Sol está parado e que é a Terra que faz um movimento de rotação completa em torno de seu próprio eixo no decurso de 24 horas. Ademais, se bem que o movimento de translação não entre propriamente para a explicação estrita da alternância entre dia e noite ao cabo de cada 24 horas, este defensor do sistema heliocêntrico também admite esta imprescindível translação completa da Terra em torno do Sol no decurso de 365 dias que, como sabemos, constitui-se no próprio fundamento do sistema heliocêntrico e que este é crucial para a explicação consequente, por exemplo, da fase cheia de Vênus.
Uma resposta do gênero, no entanto, peca, pelo menos, por duas lacunas. A primeira pode ser assim expressa: ora, se a revolução Copernicana diz respeito a esta passagem, então por que ela não se deu antes mesmo de Copérnico (1473-1543)? Ora, se antes de Copérnico houve muitos defensores da mobilidade da Terra, então por quais motivos Copérnico aparece assim tão singularmente como divisor de águas? Na carta que Galileu escreve em 1615 a Cristina de Lorena, Grã-Duquesa da Toscana, são listados pelo menos sete autores pré-copernicanos que já defendiam a mobilidade da Terra: Pitágoras, Heráclides do Ponto, Filolau, Platão, Aristarco de Samos, Seleuco e Hicetas. A segunda lacuna é que os argumentos em prol do sistema heliocêntrico careciam de defesa convincente, pois contrariavam a intuição e a experiência então consolidadas e por esta razão careciam de argumentos pós-copernicanos, pois Copérnico, como pensador de transição, ainda era parcialmente Aristotélico. Era necessário demolir os argumentos contrários à mobilidade da Terra e este espaço é legado a um protagonista de primeiríssima importância: Galileu Galilei (1564-1642). É digno de nota que no seu famoso livro Diálogo sobre os dois Máximos Sistemas do Mundo Ptolomaico & Copernicano, publicado em Florença em 1632, Galileu, em uma fala de sua personagem Salviati, tenha assim se manifestado: “…não posso encontrar limite para a minha admiração de como tenha podido, em Aristarco e em Copérnico, a razão fazer tanta violência aos sentidos, que contra estes ela se tenha tornado soberana de sua credulidade” (grifos nossos). As palavras razão e sentidos são fundamentais no método de Galileu reiteradamente mencionado pelo próprio florentino ao longo de sua obra como sendo um tal a combinar experiências sensíveis com demonstrações necessárias. Em outras palavras, era a emergência da consciência de que, sem desconsiderar a importância dos sentidos, era estritamente necessário eleger a primazia da razão. Nesta orientação metodológica, Galileu age de maneira revolucionária, em pelo menos duas vertentes: (1) Inventa a astronomia telescópica (antes dele, toda a astronomia era a olho nu) e não é por outra razão que o ano de 2009 foi escolhido como o Ano Internacional da Astronomia, pois naquele ano se comemorava o quarto século desde que Galileu houvera apontado em 1609 a sua luneta para o Céu e o estudado com os olhos da razão e não meramente com os olhos dos sentidos ingênuos e destituídos de considerações prévias; (2) Inventa a ciência dos movimentos locais que foi a base fundamental com a qual o seu sucessor extraordinário Isaac Newton (1642-1727) firmemente se apoiou.
Assim, Galileu refuta o mundo supralunar da quinta essência ou substância etérea de Aristóteles, mostrando que há crateras na Lua, o Sol exibe manchas, que Júpiter é centro de revolução de seus respectivos satélites (uma descoberta em si própria revolucionária) e, dentre outras várias descobertas fundamentais, apresenta uma estupenda prova em prol do sistema heliocêntrico: a existência da fase cheia de Vênus que era inexplicável à luz da concepção geocêntrica. Como a fase de um astro diz respeito a qual porção do disco deste astro é iluminado pelo Sol quando visto por nós aqui da Terra, então Vênus cheia somente é possível quando Terra e Vênus estão em posições diametralmente opostas em relação ao Sol e, por isso, o disco iluminado de Vênus é pequenininho pois a sua distância da Terra é máxima. Em outras posições intermediárias, o disco de Vênus é muito maior, porém a porção iluminada de seu disco é parcial, exatamente pela razão de que as distâncias relativas entre Vênus e Terra serem muitíssimo menores na comparação com a máxima distância relativa quando é exibida a fase cheia de Vênus.
Outro protagonista de primeiríssimo plano no curso da revolução Copernicana foi Johannes Kepler (1571- 1630), famoso pelas suas três leis dos movimentos dos planetas em torno do Sol em órbitas elípticas, ou seja, as assim chamadas: lei das órbitas; lei das áreas; e lei dos períodos.
Isaac Newton coma formulação das leis da mecânica e de sua teoria da gravitação universal realiza um passo de decisiva importância que se constitui na unificação entre a física de Galileu dos movimentos locais com a astronomia de Kepler. Articula conceitos seminais e de grande profundidade como espaço absoluto, tempo absoluto, massa, força e ação a distância.
Em suma, a assim chamada revolução Copernicana exigiu desenvolvimentos pós-copernicanos e deste modo seria mais adequadamente denotada por revolução Copernicana-Galileana-Kepleriana-Newtoniana, ou simplesmente, por revolução Científica. Entende-se também que a posição central de Copérnico em relação aos seus precursores da concepção heliocêntrica, citados na carta de Galileu a Cristina de Lorena, se deve muito relevantemente à defesa do heliocentrismo protagonizada por Galileu. Em suma, e a grosso modo, a Revolução Científica constitui-se em um processo complexo que pode ser considerado como o que se deu entre 1543, com publicação do De Revolutionibus de Copérnico, e 1687, com a publicação dos Principia de Newton, ou seja, foram demandados quase 150 anos de penoso trabalho.
Texto 2: O que é a Revolução Copernicana de Kant?
Vídeo: A Revolução Copernicana de Kant
Em artigo publicado no dia 15/07/2014 em Debates Culturais intitulado ‘O que é a Revolução Copernicana?’ argumentamos que a assim chamada Revolução Copernicana requereu desenvolvimentos pós-copernicanos, notadamente os realizados por Galileu, Kepler e Newton. Desta maneira, ela não se reduziu simplesmente a uma mera substituição do sistema geocêntrico pelo sistema heliocêntrico. Ela, de fato, foi bem mais além até atingir o seu ápice que foi a unificação realizada por Newton da física de Galileu dos movimentos locais com a astronomia de Kepler. Tudo somado, foi um grandioso empreendimento do espírito humano que demandou um século e meio de penosos esforços. Desta maneira, ela seria mais adequadamente denotada por Revolução de Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, ou simplesmente, por Revolução Científica. Este complexo processo teve, no dizer de Alexandre Koyré (1892-1964), prólogo e epílogo celestes, e, podemos arbitrá-lo como ocorrido no período que vai de 1543, com a publicação do De Revolutionibusde Copérnico, a 1687 com a publicação dos Principia de Newton.
Houve também uma Revolução Copernicana no campo da Filosofia: a assim chamada Revolução Copernicana de Kant (1724-1804). Foi no prefácio da segunda edição de seu importantíssimo livro intitulado ‘Crítica da Razão Pura’que Kant constatou que até então o conhecimento tinha sido regulado pelos objetos e daí perguntou se não seria melhor que os objetos fossem regulados pelo nosso conhecimento, o que já combinaria bem melhor com a ideia de um conhecimento a priori dos mesmos, ou seja, antes de qualquer experiência sobre os objetos.
Na comparação que Kant faz com Copérnico, “regular o nosso conhecimento pelos objetos” seria algo análogo ao sistema geocêntrico, enquanto “regular os objetos pelo nosso conhecimento” seria algo análogo ao sistema heliocêntrico. Como não há conhecimento possível sem que alguns a priori já estejam subjacentes, então eles são necessários.
Tanto a razão dos racionalistas empedernidos quanto os sentidos dos empiristas empedernidos encontram sérias limitações; a razão nos conduz a antinomias que nos deixam em um impasse sem saída enquanto que os sentidos baseados na indução e no hábito não garantem logicamente que o próximo exemplo venha a se constituir precisamente em um contra-exemplo. Logo como explicar uma teoria verdadeira se nem razão nem sentidos são 100% confiáveis?
Kant considerou a teoria gravitacional de Newton como sendo uma teoria verdadeira. Mas perguntou como isso foi possível se nem razão nem sentidos são inteiramente confiáveis. Impor os a priori eram necessários, pois “o espaço é a representação a priori necessária de toda experiência assim como o tempo é a representação necessária e subjacente a toda a intuição”. Pautar os objetos pelo nosso conhecimento a priori ao invés de pautar o nosso conhecimento pelos objetos se constitui a grosso modo na chamada Revolução Copernicana de Kant.
O filósofo vienense Karl Raimund Popper (1902-1994) adotou parcialmente essas ideias, mas colocou um adendo. Ora, qualquer conhecimento requer que se adote algo que seja a priori, logo tal adoção é imprescindível para qualquer possibilidade de conhecimento. No entanto, embora sejam necessários a fim de que tenhamos condições de contornar a realidade, esses a priori não são, apenas por isso, necessariamente a priori verdadeiros: eles são e continuarão a ser eternamente conjecturais, por maior que seja a correspondente base empírica de corroboração.
Um espetacular exemplo nos foi dado por Albert Einstein (1879-1955) quando escreveu o prefácio de um livro de Max Jammer sobre a história do conceito de espaço. Neste belíssimo prefácio, Einstein argumentou que há dois grandes conceitos de espaço.
O primeiro desses conceitos era o de um espaço independente dos objetos materiais, de tal maneira que se retirássemos todos os objetos materiais desse espaço, ainda assim ele continuaria lá e deste modo, ele tem primazia em relação aos objetos materiais no sentido em que, o espaço existe mesmo que nele não haja objetos materiais, mas os objetos materiais necessitam do espaço para que sejam concebidos enquanto tais.
No segundo conceito de espaço, há uma espécie de indissolubilidade entre espaço e objetos materiais de tal maneira que se forem removidos os objetos materiais do espaço, este espaço também desaparece. Neste caso, o espaço não tem primazia em relação aos objetos materiais. Aqui, o espaço somente tem sentido na correlação com os objetos materiais e assim removida essa correlação, remover-se-á também o espaço.
A teoria gravitacional de Newton pressupõe o primeiro tipo de espaço enquanto a teoria gravitacional de Einstein (ou teoria da relatividade geral) pressupõe o segundo tipo de espaço.
Einstein argumentou que ambos os tipos de espaço se constituem em escolhas arbitrárias igualmente legítimas para a pesquisa do real. Sabemos também que ambos se constituem em escolhas férteis na pesquisa da realidade.
A Revolução Copernicana de Kant quando interpretada assim, não é algo que seja um idealismo puro como alguns afirmariam, pois os a priori que são imprescindíveis para a possibilidade de conhecer são também confrontados, em eterna recorrência, com a diversificada e complexa experiência sobre o real.
*Jenner Barretto Bastos Filho é professor na Universidade Federal de Alagoas e Doutor em Física Teórica pela ETH- Zurique, Suíça. É membro correspondente da Academia Paraense de Ciência e contemplado com a Medalha do Mérito Acadêmico UFAL 45 Anos. Tem interesse nos campos de Fundamentos da Física, Ensino de Ciências, História e Filosofia da Ciência e em questões ambientais e de desenvolvimento.

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